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Title: Novas Tecnologias e Saúde
Authors: Mendes, Felismina Rosa Parreira
Jonatas Ferreira
Editors: Alves, Fátima
Keywords: genética
nanobiotecnologia
saúde
tecnologias médicas
Issue Date: 2013
Publisher: Lidel
Citation: Mendes, Felismina Rosa Parreira; Jonatas Ferreira. Novas Tecnologias e Saúde. In Coord. Fátima Alves, Saúde Medicina e Sociedade, 137-159, Lisboa: Lidel, 2013.
Abstract: Introdução Comecemos por algo simples: lidar e combater doenças sempre pressupõe alguma forma de domínio técnico, mesmo quando as práticas para obtenção da saúde estão culturalmente associadas a meios mágicos. Um aspecto importante da magia, seu sentido ritualístico estrito, a observância de fórmulas rigorosas, constitui uma forma de racionalização da experiência empírica, que resulta em conhecimento sobre propriedades alucinógenas ou curativas de certos vegetais, por exemplo. A esse respeito, é possível dizer, com Lucien Sfez (1997), que o inverso também pode ser verdadeiro, ou seja, que projetos tecnológicos contemporâneos de “grande saúde” possuem também caráter religioso. Daí que seja possível conceber uma crítica – crítica no sentido kantiano, ou seja, como busca de deslindar as condições de possibilidade de um conceito, ideia - de tais projetos em seu sentido cultural, como pretende Sfez. De qualquer modo, um princípio geral mantém-se e aprofunda-se com a racionalização das tecnologias da vida no mundo moderno: aparatos técnicos de diagnóstico, como o microscópio, aparelhos de raio x, fármacos, de um modo geral, desempenham um papel fundamental na definição daquilo que é normal ou patológico. Decisões que inscrevem um indivíduo em um desses dois campos, como nos mostram Canguilhem (2006) e Foucault (2010), não apenas pressupõem e mobilizam aparatos tecnológicos, mas encontram ali sua condição de possibilidade. E isso num sentido fundamental: essas decisões são essencialmente técnicas. Para enfatizar o óbvio: todo diagnóstico e toda terapêutica estão intimamente associados à realidade que esses aparatos produzem. Neste sentido, uma infecção é tanto o produto de ataques de fungos, parasitas, vírus, bactérias, quanto do microscópio que produz tal realidade na medida que lhe confere identidade. Da mesma forma, podemos dizer que sem o desenvolvimento da farmacologia contemporânea, ou seja, sem o desenvolvimento dos inibidores de acetilcolinasterase, entre outros fármacos, aquilo que hoje chamamos de mal de Alzheimer continuaria a ser tratado como resultado inevitável, natural do processo de envelhecimento. É possível dizer que há uma relação de estreita cumplicidade entre o surgimento da pílula anticoncepcional e os movimentos de emancipação da década de 1960 em que as mulheres reivindicavam seus próprios corpos, seu próprio prazer. Sem a descoberta do citrato de sildenafila, o que hoje chamamos de disfunção eréctil, conceito que oferece um espectro amplo de gradações entre uma ereção considerada plenamente satisfatória e a incapacidade, continuaria a ser tratado a partir do conceito de impotência. E um homem é impotente ou não o é. O que é considerado satisfatório, funcional e, no limite, normal, mantém uma estreita relação com os meios técnicos disponíveis. Assim, a relação entre aparato biotecnológico e ideias particulares, culturalmente contextualizadas de saúde parece também bastante evidente. Cabe à sociologia da saúde buscar entender essa relação. Tomemos o que Foucault (2000) chama de processo de regulamentação das populações urbanas, elemento crucial daquilo que ele chama de biopoder, ou seja, deste processo mediante o qual a vida biológica se torna o eixo fundamental do político nas sociedades industriais. Sem desenvolvimentos técnicos específicos, tais como, dispositivos de controle estatístico de nascimento, mortalidade, sem recursos eficazes de saneamento público, sem o desenvolvimento de métodos eficientes de imunização, sem a microbiologia, de que modo esse tipo de cultura política poderia ter surgido na Europa? E a microbiologia, é preciso ressaltar, traz em si um mundo completamente novo que está para além de nossa experiência fenomenológica cotidiana. Neste espaço técnico, aquilo que muitas vezes determina a sanidade ou a doença de um ser vivo não pode ser percebido sem um aparato, sem o microscópio. Esse tipo de constatação se revela importante para entender a própria prática curativa e os recursos discursivos que a orientam, como observa Canguilhem (2005, p. 28): “O médico terapeuta que exercia nas diversas partes da medicina, atualmente chamado 'clínico geral', viu declinar seu prestígio e sua autoridade em benefício dos médicos especialistas, engenheiros de um organismo decomposto tal como uma maquinaria. Médicos ainda pela função, porém, doravante, não mais por corresponderem a uma imagem secular, uma vez que a consulta consiste na interrogação de bancos de dados de ordem semiológica e etiológica, por meio do computador, e que a formulação de um diagnóstico probabilista é sustentada pela avaliação de informações estatísticas”. É ainda Canguilhem quem nos ensina: a passagem de uma medicina expectante, de uma terapêutica da passividade diante de uma natureza que deveria seguir seu curso, para uma medicina que interfere, que escuta a natureza para poder subverter sua ordem normal, também pressupõe o desenvolvimento de meios técnicos específicos. Esse tipo de constatação nos coloca na trilha de uma série de indagações que dizem respeito aos nossos próprios envolvimentos biotecnológicos e que podem ser enfeixadas na seguinte indagação: em que medida podemos apreender o sentido cultural e político que provém de tais envolvimentos? O esforço teórico de autores como Michel Foucault, Nikolas Rose, Susan Oyama, Evelyn Fox-Keller, entre tantos outros, ajudam-nos a encarar esse desafio teórico. Na década de 1970, Foucault parece lançar algumas luzes sobre o tema quando compara o poder atômico com os avanços da biotecnologia de seu tempo. Dizia ele, então, sobre a biologia molecular: “Esse excesso de biopoder aparece quando a possibilidade é técnica e politicamente dada ao homem, não só de organizar a vida, mas de fazer a vida proliferar, de fabricar algo vivo, de fabricar algo monstruoso, de fabricar – no limite – vírus incontroláveis e universalmente destruidores. Extensão formidável do biopoder que, em contraste com o que eu dizia a pouco do poder atômico, vai ultrapassar a soberania humana” (Foucault, 2000, p. 303). Se de fato as novas tecnologias da vida são capazes de colocar em xeque o próprio humanismo que, para Foucault, vem orientando o capitalismo nos últimos séculos, estamos diante de um poder considerável. “Fazer a vida proliferar” de modo tecnicamente preciso, mas detonando processos amplos “incontroláveis”; abandonar o limite flexível das espécies, a partir da engenharia genética, por exemplo, e já não poder oferecer a estabilidade de uma natureza que harmoniza os processos biológicos. Essas são duas conseqüências de grande vulto do desenvolvimento recente das tecnologias da vida. Mas onde a vida prolifera de forma descontrolada, onde a possibilidade do monstruoso está sempre colocada, as biotecnologias já não podem estabelecer confortavelmente o limite entre saúde e doença, entre normalidade e patologia. Não é fortuito, portanto, que as duas principais frentes onde hoje se observam mudanças técnicas que redefinem a própria ideia de saúde, nomeadamente, a biologia molecular e a nanobiotecnologia, coloquem-nos um novo sentido de terapêutica: não apenas normalizar o corpo que se encontra adoecido, em estado patológico, mas potencializar seus padrões de normalidade. E aqui já pressentimos que o estado da arte das novas biotecnologias tornam difícil estabelecer uma distinção clara entre uma terapia destinada à cura e outra destinada à melhoria. O próprio conceito de normalidade passa a ser considerado problemático. “Existe um debate renovado sobre a permissibilidade de empregar a tecnologia para melhorar as capacidades físicas e mentais dos indivíduos para além dos contextos estritamente terapêuticos [...]. Por exemplo, no desporto profissional, temos assistido nos últimos anos a uma escalada dos escândalos por dopagem. Há algum tempo o emprego das terapias gênicas para melhorar o rendimento dos atletas (dopagem genética) constitui um segredo que a duras penas, e apenas muito recentemente, poderia ser detectado mediante controles realizados sobre o efeito. Outro caso muito debatido é a estimulação cerebral profunda. Trata-se de uma técnica de implante cerebral empregada há alguns anos para tratar os sintomas do Parkinson e de outros distúrbios neurológicos. Pode igualmente aliviar a depresor severa. [...] No entanto, esta técnica e outras não-invasivas e mais recentes, usadas para tratar diversos transtornos neuropsiquiátricos [...], podem melhorar o humor e bem-estar psicológico dos indivíduos considerados sãos e provocar outras alterações psicológicas que supostamente suporiam uma melhora com respeito aos estados normais” (Escalante, 2010, p. 90). Subjacente a essas transformações, ocorre uma mudança epistemológica nas ciências da vida, ou, ao menos, nos dois espaços que acima mencionamos. Esta mudança passa pela percepção da vida já não tanto como conjunto de engrenagens, como o foi para a biologia e medicina dos últimos dois séculos, mas como expressão de uma linguagem codificada (Ferreira, 2002). Em outras palavras, poderíamos dizer que a cibernética, isto é, a teoria da informação, passa a ser o paradigma que orienta as novas tecnologias da vida. No nível molecular, onde a diferença entre o vivo e o inanimado é ontologicamente problemática, a vida passa a ser compreendida como padrão codificado na estrutura genética e a doença é pensada como erro na transmissão de informação, como entropia. Já na década de 1960, quando publicou Le normal et le patologique, Canguilhem apontava para essa mudança fundamental, e que aqui associamos a uma plasticidade desorientadora que passa a orientar a manipulação e o cuidado da vida. É essa mudança que transformará a concepção de terapêutica e comprometerá as tecnologias da vida não apenas com a normalização (conceito em si problemático), mas com a potencialização e proliferação da vida, como observou Foucault na citação acima. Organismos geneticamente modificados são um bom exemplo do que Foucault provavelmente tinha em mente em sua aula da década de 1970. As palavras de Canguilhem em seu livro de 1966, no entanto, antecipam esse conjunto de desenvolvimentos científicos, cuja forma e consequências começam a ficar mais claros apenas nos dias atuais. “No início, o conceito de erro bioquímico hereditário se baseava na engenhosidade de uma metáfora; ele se baseia, hoje em dia, na solidez de uma analogia. Na medida em que os conceitos fundamentais da bioquímica dos aminoácidos e das macromoléculas são conceitos tirados da teoria da informação, tais como código ou mensagem, na medida em que as estruturas da matéria da vida são estruturas de ordem linear, o negativo da ordem é a interversão, o negativo da sequência é a confusão, e a substituição de uma arranjo por outro é o erro. A saúde é a correção genética e enzimática” (Canguilhem, 2006, p. 237) Com a plasticidade da língua franca, da informação genética, a ansiedade diante das construções linguísticas infinitas; a perspectiva da cacofonia e da entropia na qual a vida, pensada como padrão de comunicação, pode se converter. E como nenhuma comunicação é perfeita, a vida pensada a partir dessa perspectiva técnica é infinitamente perfectível. A medicalização da existência, nesse sentido, esse enorme investimento libidinal em nos mantermos funcionais, em anteciparmos eventuais falhas, em prepararmo-nos sempre para melhorar performance intelectual, erótica etc., é um dado crucial de nossa cultura. A tendência biopolítica que, segundo Foucault, habita o coração das sociedades capitalistas intensifica-se, deste modo, como ansiedade – não sendo fortuita a significativa disseminação de substâncias psicoativas, antidepressivos, ansiolíticos, em todo o mundo. Essa ansiedade é apenas uma manifestação de uma cultura do risco, de uma cultura que se coloca problemas técnicos que preparam soluções técnicas que desemboca em novos problemas técnicos, e isso indefinidamente. A literatura a esse respeito tem sido particularmente rica a partir da contribuição de Ulrich Beck (1992) (Deborah Lupton, John Adams, entre outros). Por outro lado, esse tipo de inquietação pode ser considerada apenas como parte de um processo mais amplo em que os indivíduos passam a assumir as rédeas de sua própria condição biológica, ou seja, de um processo de constituição de uma cidadania biopolítica (Nikolas Rose, 2004; 2005). Em suma, com a crise do Estado de Bem-Estar Social e o fortalecimento de uma cultura técnica da saúde que antecipa a disfunção, “o erro” genético, e que se coloca na esteira da perfectibilidade constante e da analgesia, teríamos paralelamente, segundo Rose, assumido de modo mais autônomo o cuidado sobre nossas vidas. As considerações de Rose acerca da existência de uma cidadania biopolítica são verdadeiras até o ponto em que não sejam questionados os princípios gerais, a partir do qual a lógica do consumo se impõe neste contexto. Perfectibilidade constante, analgesia e consumo são valores intimamente imbricados nas sociedades contemporâneas. Essa lógica resulta não apenas, diga-se, na disponibilização de novos medicamentos e terapias, mas na imposição da funcionalidade dos corpos, na imposição do desejo da máquina capitalista (aqui num sentido deleuziano) no interior dos corpos, como condição de exercício daquela cidadania. Essa cidadania que Lipovetsky (2009), num outro contexto, chama de cidadania do consumo. De modo semelhante à biologia molecular, é o controle molecular da vida que está também em questão quando falamos em nanobiotecnologia. Também aqui risco e perfectibilidade da condição biológica humana andam de mãos dadas, como já antecipavam os relatórios de identificação de cenários futuros para as nanociências produzidos no começo deste século pelos Governos de países como o Reino Unido e os Estados Unidos da América. A rigor, não há uma diferenciação clara entre biologia molecular e nanobiotecnologia. Promessas de terapia gênica, a construção de organismos artificiais são projetos em que os dois campos de conhecimento se confundem. Porém, enquanto o gene é uma macromolécula, e a biologia molecular opera nesse nível, a nanobiotecnologia opera em escala atômica, obtendo mediante reorganização da arquitetura atômica propriedades inusitadas da matéria. Se pensarmos na nanotecnologia de um modo amplo, podemos dizer que as promessas que a intervenção humana nesse domínio pouco explorado pela ciência e pela tecnologia são inúmeras. Entre as áreas que a Royal Socity e a Royal Academy of Engineering identificam, em 2004, como devendo receber atenção especial do governo britânico, isto é, apoio financeiro, encontramos as seguintes: i. produção de nanomateriais, com propriedades novas ou antigas propriedades aperfeiçoadas; ii. metrologia mais precisa; iii. Eletrônica, optoeletrônica e tecnologia de informação e comunicação – a própria história das nanociências e nanotecnologias está intimamente vinculada a essa possibilidade, ou seja, de produzir formas mais eficientes de armazenar e processar informação; iv. nanobiotecnologia e nanomedicina; v. aplicações industriais. O fato é que em 2006, no mundo, as nanotecnologias estava “incorporadas em mais de US$ 50 bilhões de bens manufaturados” (Linkov et al, 2009, p. 516). No que diz respeito especificamente à nanobiotecnolgia, temos observado um considerável progresso em áreas como diagnóstico e disponibilização de medicamentos no organismo vivo. Há aqui um fato importante e que será objeto de considerações mais aprofundadas: a própria fronteira entre diagnóstico e terapêutica tende a ser erodida pelos projetos de produzir medicamentos inteligentes com que acena a nanobiotecnologia. Ou seja, mediante encapsulados em nanoestruturas, os fármacos são lançados no organismo humano para identificar e interagir com células específicas, tais como, por exemplo, células tumorais. A nanoestrutura identifica essas células, que podem ser visualizadas por escaneamento, e em seguida o fármaco é liberado nestes pontos específicos através de radiação. O cientista João Nuno Moreira, do Centro de Neurociências da Universidade de Coimbra, expressou-se do seguinte modo acerca desta perspectiva: “A nanotecnologia [que usa partículas muito menores do que a célula] permite o diagnóstico, numa fase muito precoce, do cancro. Funciona como um míssil, que identifica e detecta as células que poderiam dar origem a um novo tumor” . A imagem do míssil inteligente, metáfora fundadora da cibernética, nos traz de volta para esse paradigma, de um mundo da convergência entre neurociências, tecnologia da informação, biologia molecular e física atômica, um mundo da ansiedade, do risco, da perfectibilidade infinita. Neste ensaio, analisaremos alguns traços fundamentais da cultura tecnológica que se delineia com o desenvolvimento desses dois campos da ciência: a biomedicalização, onde a genética e a nanobiotecnologia assumem lugar de destaque.
URI: http://hdl.handle.net/10174/9956
Type: bookPart
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