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http://hdl.handle.net/10174/21295
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Title: | Misericórdias, Estado Moderno e Império |
Authors: | Abreu, Laurinda |
Editors: | Paiva, José Pedro |
Keywords: | Misericórdias Estado |
Issue Date: | 2017 |
Publisher: | Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas |
Citation: | Abreu, Laurinda, "Misericórdias, Estado Moderno e Império", Portugalia Monumenta Misericordiarum, José Pedro Paiva (coord.), Lisboa, União das Misericórdias Portuguesas, pp. 245-277. |
Abstract: | O presente texto tem como principal objectivo salientar a importância das
misericórdias enquanto instituições criadas para organizar e administrar uma parte substancial dos recursos
assistenciais das comunidades locais e conformar as práticas caritativas aos desígnios normativos e
reguladores do poder central. Assenta no pressuposto de que elas foram, desde o primeiro momento,
associadas a um núcleo de valores ligados ao monarca e à corte – a coroa real e os sete castelos inscritos
no escudo das misericórdias, identificados como símbolos da autoridade e soberania régia, consagravam o vínculo entre o poder central e as novas confrarias –, que o poder político quis que fossem partilhados
pelos diferentes grupos sociais. Nesse sentido, assumo as santas casas como parte integrante dos processos
sociopolíticos que estiveram presentes na construção do Estado Moderno português, num momento em
que a acumulação de riqueza proveniente do comércio ultramarino facilitava a uniformização das estruturas
administrativas à escala naciona. Não é meu propósito, contudo, debater a natureza do Estado, os seus
princípios teóricos e doutrinais, nem mesmo discutir os processos históricos e análises historiográficas
sobre o seu desenvolvimento, assuntos sobre os quais existe abundante bibliografia especializada. Mas tão-
-somente, numa linha de análise que é tributária, entre outros, de Michael Braddick, salientar a importância
de elementos não estritamente políticos na formação do Estado Moderno. Obviamente, sem nunca perder
de vista as limitações do poder central e os constrangimentos que se colocavam ao efectivo exercício da
sua autoridade. Entre outros, os que lhe eram impostos pelas elites locais, constituídas em redes de poder
que a coroa não controlava integralmente, mas também os decorrentes das precárias e insuficientes formas
e vias de comunicação, bem como da ausência de estruturas materiais e humanas que, de forma eficiente,
representassem a monarquia na periferia.
Defendo também que embora as misericórdias se tivessem estabelecido como uma espécie
de projecto comum partilhado entre o rei e as comunidades locais, o seu estudo ganha outra espessura
se forem integradas no conjunto mais alargado das políticas de assistência e saúde, onde também se
encontram o controlo das epidemias e da situação sanitária, bem como a regulação da formação, empírica
e académica das profissões de saúde. Reunidas, estas diferentes vertentes compuseram um todo articulado
e coerente, intervencionado pela coroa desde os finais da Idade Média, que ficou intimamente ligado à
afirmação do poder régio. Uma interpretação que não desconsidera a importância da caridade enquanto
virtude moral e cristã dos monarcas, mas que releva de um outro princípio: ao vincularem a assistência e a
saúde às dinâmicas do poder, os monarcas modernos enquadraram -nas politicamente. São os propósitos
integradores e normalizadores, a aplicar tanto na metrópole como no império, que mais valorizam os
investimentos legislativos e patrimoniais realizados pela monarquia nestas áreas Tomo igualmente como certo que enquanto espaço de intervenção política, as questões da
assistência e saúde em muito beneficiaram da continuidade da acção governativa registada ao longo de
Quinhentos, o que se é válido para cada um dos elementos acima referidos, é -o de forma particular para as
misericórdias. Terminado o século XVI, elas estavam suficientemente robustecidas para, sem perder a sua
especificidade e matriz doutrinária e funcional que configurara o projecto inicial, enfrentarem os múltiplos
sobressaltos do século XVII, as mudanças emergentes no século XVIII, nomeadamente em relação às novas
formas de pensar a assistência e de relacionamento com o poder central, e a nova ordem liberal oitocentista.
Ressalve -se, no entanto, que o facto de a coroa ter colocado na esfera da governação boa parte
dos mecanismos de assistência e saúde, alargando com isso o seu espaço político, não significou que
sobre eles exercesse um apertado controlo. Maugrado a maior capacidade interventora do poder central em termos formais, administrativos e fiscalizadores, em momento algum se pode subestimar o poder das
elites locais no referente à implementação das políticas sociais emanadas do centro político, de que a
fundação das primeiras misericórdias é exemplo. Mas, sobretudo, porque aos homens que as governavam
pertencia o poder discricionário de localmente delimitar o universo dos assistidos e formatar o conceito de
pobre merecedor, em reconfiguração no início da modernidade. Aos grupos dominantes representados nas
câmaras municipais pertencia igualmente propor à coroa os nomes dos profissionais de saúde a recrutar
pelos municípios bem como a cooperação institucional nas questões sanitárias, particularmente importante
em épocas de surtos epidémicos. Foi a articulação de interesses dos diferentes actores envolvidos, com
diferentes motivações mas com capacidade para se organizarem de forma dinâmica e interagir, que permitiu
que o sistema funcionasse. Os interesses da monarquia reportavam -se à estruturação das práticas de
caridade e assistência através da utilização de regras e procedimentos comuns, que igualmente transportavam
objectivos de conformação social, e ao aumento do número dos interlocutores na província: ao fazer
equivaler em prestígio e nobreza as funções de mesários às dos vereadores, se é certo que por um lado
mantinha a ordem jurídica dominante quanto ao estatuto social exigido aos ocupantes dos cargos dirigentes,
por outro permitia expandir a base de recrutamento social já que abria a porta a nobilitações locais,
legitimadas pelas misericórdias. Do lado das elites locais, o interesse nas novas instituições estava ligado
às suas capacidades de organização de uma parte substancial da vida comunitária, mas também ao facto de
os seus órgãos dirigentes alargarem o espectro das possibilidades de exercício do poder, quer ao nível das
próprias misericórdias – e recorde -se que as suas estruturas de mando eram bem mais complexas do que as
das confrarias congéneres –, quer ao nível municipal. Segundo esta grelha interpretativa, mesmo os pobres,
pelo menos os que estavam enquadrados pelos parâmetros da elegibilidade localmente definidos, tinham
interesses específicos e podem ter desempenhado papéis bem mais activos que aqueles que comummente
lhes são atribuídos e os confinaram a meros receptores passivos da generosidade alheia, vítimas de uma
ordem que os oprimia e pretendia disciplinar.Assumindo estes pressupostos e tendo por base o conjunto de exemplos recolhidos nos volumes
publicados nos Portugaliae Monumenta Misericordiarum procurar -se -á objectivar as diferentes linhas
através das quais a coroa pensou e usou as misericórdias como um instrumento social e político, sem
esquecer alguns dos dividendos que os outros actores colheram por se envolverem nas questões da caridade
e assistência durante o Antigo Regime. |
URI: | http://hdl.handle.net/10174/21295 |
ISBN: | 9789898375087 |
Type: | bookPart |
Appears in Collections: | CIDEHUS - Publicações - Capítulos de Livros
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